Agressão a agentes da Polícia: especialistas apontam corrupção e deficiências na formação como causas

 Vários vídeos colocados a circular nas redes sociais mostram agentes das forças de defesa e segurança a serem agredidos pela população em vários pontos do país. Especialistas alertam que o Estado não pode minimizar o problema, pois pode descredibilizar as instituições em causa. Mais do que isso, o fenómeno pode estar a esconder tensões mais graves na sociedade.


O que leva cidadãos a unirem-se e agredir agentes da Polícia? Por que é que, nos dias que correm, os membros da Polícia são afrontados, mesmo armados? Estas são as perguntas que o “O País” procurou ter respostas junto de especialistas.




Para Flávio Menete, antigo director da então Polícia de Investigação Criminal (PIC), o mal parte da base. “Lembro-me que estive em reuniões, em comunidades, no processo de selecção de candidatos para a Polícia. São reuniões em que ficam perfiladas as estruturas locais…quem (naquelas reuniões) ousa dizer, na presença dessas autoridades, que o indivíduo X ou Y, que, por sinal, é seu filho ou sobrinho, é alguém de conduta duvidosa? Ninguém”, constatou Menete para depois acrescentar que “isso quer dizer que o método de busca de informação referente à conduta dos candidatos falha à partida”.


E porque o processo de selecção falha à partida, o fim desse candidato é, na sua visão, previsível. “O que temos é um recrutamento de pessoas que não têm noção da responsabilidade do que é representar a PRM, a Polícia de Trânsito, a Polícia Municipal. Os indivíduos abraçam a profissão sem vocação e não têm preocupação em relação a isso. O que notamos é que tais indivíduos acabam não tendo preocupação em serem bons profissionais, acabam vivendo preocupados em vestir a farda para alcançar os seus objectivos pessoais”.


CORRUPÇÃO E TENTATIVA DE REORGANIZAÇÃO DO SECTOR INFORMAL: A CAUSA DA TENSÃO, FEIJÓ


O sociólogo João Feijó entende que a corrupção no seio da Polícia é parte da raiz da tensão existente entre os agentes policiais e a população. Para o estudioso, os salários “magros” fazem com que os funcionários públicos, no geral, tenham que se envolver em esquemas corruptos para suprir as necessidades que os seus salários não cobrem.


“A nossa Polícia tem salários muito baixos, o Estado não tem salários convidativos que possibilitem com que os agentes tenham um poder de compra, numa sociedade de consumo emergente como é a de Moçambique. Os funcionários públicos, no geral, tiveram que se envolver em actividades paralelas ou ilícitas para compensar os magros salários”, defendeu Feijó para quem “o Governo tem consciência disso, mas para evitar conflitos laborais internos, faz uma certa vista grossa.”


O estudioso considera que a COVID-19 e o terrorismo em Cabo Delgado são fenómenos que empurraram muita gente para informalidade, a mesma informalidade que, muitas vezes, as autoridades municipais procuram combater.


“Há muitas pessoas que fogem da guerra e vêm engrossar o sector informal, principalmente no norte. Quando chegam às cidades, encontram tentativas dos municípios de formalizar a actividade. Entendo que são medidas que devem ser feitas, mas não nesta altura, atendendo que há oportunismo por parte dos agentes de autoridade”, descreveu, tendo acrescentado que “temos visto vários agentes da Polícia Municipal a extorquir pessoas, a arrancar produtos alimentares sem nenhum tipo de inventário. A população sente que não só o Estado não está a subsidiar a sua actividade, como é o mesmo Estado, através dos seus agentes, que lhes está a prejudicar, e a extorquir dinheiro.”


O sociólogo comentou a fúria e consequente vandalização da casa do chefe de Departamento da Polícia de Trânsito em Montepuez. Na referida manifestação, os mototaxistas contestavam contra o excesso de fiscalização e a má actuação da Polícia. “Eles têm o sentimento de que o Estado está contra a sua actividade e isto justifica a agressividade que demonstram contra os agentes”.


Neste sentido, Feijó reitera que este não é o momento de organizar o sector informal, nem em Maputo, nem em qualquer parte do país. “Adoptar atitudes políticas que prejudicam a população mais pobre não é oportuno, até porque, em Maputo, por exemplo, deveria ter-se arranjado outras soluções, junto à Faculdade de Arquitectura. Havia a possibilidade de se criarem espaços, para alguns informais, em algumas artérias, numa tentativa de formalizar um bocado a informalidade, ao invés de procurar, simplesmente, expulsar os vendedores para os mercados periféricos, que não são atrativos.”


 SE NÃO HOUVER INTERVENÇÃO: “AS PESSOAS VÃO SALTAR DO AGENTE DA POLÍCIA PARA OUTRAS ESFERAS”, ALERTA MENETE


Face ao crescente número de episódios de agressões a agentes da Polícia, Flávio Menete chama atenção. “Estamos num momento em que é possível desenhar cenários mais graves. Se essa situação se mantiver por mais tempo, teremos cenários em que as pessoas vão saltar do agente da Polícia para outras esferas”, anteviu o também antigo Bastonário da Ordem dos Advogados, para quem deve ser feito um estudo profundo sobre o fenómeno. “Quando as diversas áreas de saber se sentarem para analisar este fenómeno, poderão trazer-nos informações interessantes que dão conta do facto, o que estava subjacente, não é a ideia de atacar o agente, é que as pessoas estão saturadas de muita coisa”, explicou.


 ESTADO DEVE AGIR, DEFENDE JOSÉ CALDEIRA


O advogado José Caldeira defende que a agressão contra agentes da Polícia municipal em Pemba (registada em vídeo) e o episódio de Montepuez não deve ser encarado de ânimo-leve. “Tem que se distinguir dois cenários, um é o direito de manifestação, de discordar do mau comportamento dos agentes, mas que tal deve ser feito de forma pacífica, e outro é a violência que não é aceitável, porque isso é crime. Perante este tipo de situações, as autoridades podem e devem participar esses casos e levar os prevaricadores à barra do tribunal para que sejam julgados e responsabilizados”, defendeu.


Nos vídeos publicados nas redes sociais, alguns cidadãos afrontam agentes da Polícia, inclusive armada, o que torna a situação ainda mais complexa.


“Não é muito bem, nem para a imagem, nem para o exercício dos poderes do Estado, que os agentes caiam em descrença. Os agentes agem ou devem agir de acordo com a lei. Eles não podem exceder o que está plasmado na lei. Mas também, não podem deixar de agir, é para isso que eles foram formados, é para isso que eles são pagos. O Estado deve treinar devidamente os seus agentes e dar os meios próprios. Muitas vezes, os agentes não têm meios de trabalho para agir em determinadas situações. Não é só com armas que eles deveriam defender-se”, explicou o académico.


Mas, nem tudo vai mal no comportamento da Polícia. Num dos vídeo que está a circular na internet aparece um agente de trânsito a tentar convencer uma cidadã a usar a ponte pedestre, na Avenida de Moçambique, mas a atitude do agente não foi bem recebida pela senhora, que inclusive afrontou e desobedeceu à ordem policial.


“Há situações em que cidadãos já perderam, por completo, o respeito para com a Polícia, para com a sua farda. As pessoas já agem de forma indisciplinada. Há aqui um problema muito triste e muito grave, que é o facto de que já não há uma ordem pública. E porque o agente que está a defender a ordem pública é visto como sendo oportunista, estando nessa condição, o cidadão deixa de o respeitar e como sociedade isto se torna caótico”, concluiu João Feijó.

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